- Ana, você me enviou um email dizendo que precisava falar comigo o quanto antes, então, aqui estamos. Sobre o que queria conversar?
- Eu não sou a Ana.
- Não? Então quem é você desta vez? Bruna? Camila? Beatriz...?
- Vivian.
- Espera. Então esta é a primeira vez que conversamos?
- Comigo, sim.
- Vivian... Isso, isso é realmente interessante. Quando foi que você... surgiu?
- Este receptáculo está instável, Ana, a pessoa que realmente deveria comandar este corpo nesta dimensão, está sendo derrotada.
- O quê? Dimensão? As outras nunca mencionaram nada parecido. O que seria isso?
- Certo, você não sabe.
- Não, eu não sei. Mas gostaria muito de ouvir você falar, Vivian.
Ana, agora tomada por uma outra personalidade que nunca havia visto se levantou da poltrona em silêncio, pegou o copo d’água, tomou um gole e caminhou em direção a janela, olhando para a rua abaixo.
- Doutora... Quero que imagine a seguinte situação: existe uma caixa que encontra-se dentro da sala de um prédio. Este prédio possui corredores infinitos e infinitos andares. O conteúdo da caixa é exatamente igual ao conteúdo das caixas da sala abaixo e da sala acima, e a caixa da sala que fica acima da outra também, assim como para a debaixo. Infinitamente.
Para cada conteúdo da caixa, existe um receptáculo num plano que é diferente de todos os outros. Naturalmente, existe uma conexão da caixa com seu respectivo plano. Do mesmo jeito que existe uma conexão desta caixa com as caixas que ficam abaixo e acima dela.
Esta conexão de uma caixa com outras de outros níveis é algo que nem todos os receptáculos tem condição de fazer, no entanto, é algo muito mais comum do que imagina. Inclusive, estou fazendo isso agora mesmo.
- Vivian, espera, não estou conseguindo entender exatamente seu ponto.
- Bruna, Camila e Beatriz. Não é?
- O quê? O que quer dizer com isso?
- Elas não fazem parte deste plano, mas usam o receptáculo, ou melhor, o corpo de Ana para se comunicar contigo.
- Vivian, acredito que esteja errada sobre isso. Essas são outras personalidades pertencentes a própria Ana e que viemos tratando há um bom tempo e-
- Elas não são outras personalidades. Elas são, de certa forma, a Ana, mas de planos diferentes. Vocês usam um termo para isto, se não me engano, multiverso.
- Então você está me dizendo que as outras personalidades, incluindo você, são a Ana, mas de universos diferentes?
- Sim. Pode-se dizer que sim.
- Certo... então realmente existem outros universos.
- Existem infinitos universos, infinitas Ana’s com nomes diferentes, aparência diferentes, sexo diferente, pais diferentes, vidas diferentes, vivendo em mundos diferentes e em épocas diferentes.
- Nossa... Isso é, realmente... Incrível. Mas, porque então você mencionou que Ana está sendo derrotada? Ela está em algum tipo de batalha?
- É quase isso. Além de mim e delas, existe um outro alguém.
Vivian voltou da janela e se sentou na poltrona, ainda com o copo em mão, tomou mais um gole e o largou na mesinha, cruzou as pernas e me olhou profundamente.
- Quem?
- Eu não sei. Não consigo vê-lo, nem mesmo senti-lo. Ele tem muito mais conhecimento de tudo do que eu.
- Conhecimento de tudo... o quê?
- Existência. Universo... As outras simplesmente tomam o corpo de Ana quando ela permite. Quando isso acontece, no plano onde cada uma delas vive, seu corpo dorme. Vocês chamam isso de projeção astral. Isso acontece de forma espontânea e acontece com Ana por ela ser, por assim dizer, o elo fraco da corrente. Algo não está certo com seu corpo neste plano e isso está a prejudica-la cada vez mais.
Eu, por outro lado, estou aqui por vontade própria e sem permissão da Ana.
- E o que você quer com isso?
- Quero descobrir o que está acontecendo com Ana.
- Porquê?
- Porque ela pediu a minha ajuda.
- Espera, como ela fez isso?
- Ela me chamou, em meu sonho, enquanto dormia em meu plano.
- E você acha que ela pediu sua ajuda para exatamente o quê?
- Ela não pediu ajuda apenas para mim, mas, de todos que ela pediu ajuda, eu era o único capaz para fazer isso. Por isso estou aqui.
- E quanto a Ana, onde ela está?
- Ela está na sala do prédio, ela sabe que estou aqui.
- E ela não quer voltar?
- Não. Ela está com medo.
- E porque estaria?
- Porquê da última vez que ela estava aqui, o alguém de que falamos a expulsou e tomou conta de seu corpo. Ana teve de lutar muito para tomar novamente o seu lugar e, assim que o fez, foi em busca de ajuda.
- E esse alguém... você tem ideia de quem seja?
- Sim, eu tenho...
- E quem seria?
Vivian respirou fundo, descruzou as pernas e a cruzou novamente na outra direção.
- Quando se está viajando, uma barreira é criada em volta de seu corpo para assegurar o seu retorno. Quando se permite que, assim como disse, outra “personalidade” tome conta de seu corpo, você o deixa e volta para a sala do prédio. No entanto, quando isso ocorre, a original pode retornar para seu corpo se a atual permitir que isso ocorra. Caso contrário, as duas entram em conflito até que uma das duas ceda o lugar para a outra.
É assim que Bruna, Camila e Beatriz faziam com Ana.
Mas esse alguém, ele quer o corpo de Ana para si. Isso acontece quando, durante uma viajem, o corpo morre. Ele pode andar por todos os corredores e andares do prédio, mas não pode retornar para seu corpo pois já não há mais vida nele. Diferente de quando se está em seu corpo e é morto, o ciclo não reinicia, você fica preso neste prédio para todo o infinito.
Quando isso acontece, você pode ser um observador e ver tudo o que acontece com a Ana de todos os planos e até mesmo ver o que acontece com qualquer outra pessoa de qualquer outro plano, sem interferir em nada.
No entanto, você pode ir para você mesmo de planos diferentes e fazer como Bruna, Camila e Beatriz faziam. Mas quando retorna você volta para este prédio para continuar vagando por todo o infinito.
- Certo... então é isto o que esse alguém tem feito?
- Correto.
- E você acha que ele quer tomar o corpo de Ana para... ?
- Se matar. Somente assim ele poderia reiniciar o ciclo, mas isso colocaria Ana na mesma posição em que ele se encontra agora.
- Eu... eu estou sem palavras para isso...
Vivian se levantou bruscamente. Sua posição e feições mudaram em questão de segundos. Ela levou as duas mãos à cabeça e começou a gritar, um grito tão estridente que meus tímpanos pareciam que iam estourar. Me levantei e fui em sua direção para acalmá-la e foi então que me surpreendi.
Ela me agarrou pelo pescoço e me levantou, meus pés saíram do chão. Ela voltou sua face para mim. Estava completamente diferente, aquela certamente não era Vivian, não era Ana e nenhuma das outras também.
Senti que iria morrer, mas ela deu um sorriso e me largou, virando as costas e sentando na poltrona.
- E então, vamos conversar?
Meu pescoço estava doendo, mas a situação era tão intrigante que ignorei o que me aconteceu, sentei na poltrona, tomei um gole de água, peguei meu caderno e caneta e olhei para ela.
- Você quer conversar?
- Sim, Doutora. Foi para isso que lhe enviei o email, afinal.
- Você não é a Vivian, não é?
- Vivian? – ela deu um sorriso assustador – não, não Doutora. Tive de expulsá-la daqui para que pudesse finalmente conversar contigo.
- Se você não é a Vivian, então quem és?
- Adivinha?
- Eu... eu não faço ideia.
- Sou aquele de quem falavam, sua velha burra.
- Certamente não é nenhuma das outras, então... Qual seu nome?
- Eu sou Caliban.
- Certo, Caliban... Sobre o que gostaria de conversar?
- Bom... A vadia da Vivian me poupou o trabalho de lhe explicar os detalhes, então serei breve. Eu quero este corpo para mim. Já faz muito tempo que vago em busca de um receptáculo tão frágil como este. Quero-o para mim, irei concertá-lo e viver o resto da vida que deveria ser minha e, então, poderei reiniciar o ciclo novamente onde eu deveria estar.
- Então você não quer se matar?
- Eu gostaria, mas é impossível fazê-lo. Somente o proprietário do receptáculo é capaz de tirar sua própria vida e forçar um outro ciclo a acontecer.
- Mas e quanto a Ana?
- Ela que se foda. Depois de milênios ela pode aprender a fazer o que faço e, com um pouco de sorte, se livrar do inferno facilmente, assim como eu.
- E o que houve com Vivian?
- Ah, sim, a vaca voltou para a casa. Há muito tempo não encontrava alguém tão formidável quanto ela. Na verdade, ela está tentando tomar o controle enquanto conversamos aqui, mas não permitirei que retome o controle, já que ela quer prejudicar meus planos.
- E o que você pretende fazer então?
- Neste plano, existe algo que vocês chamam de medicamentos de tarja preta. Essa porcaria torna mais difícil o controle de qualquer outro sobre este receptáculo, e é exatamente isto o que quero. Inclusive, você receitava estes medicamentos para a Ana e acredite, surtia efeito, mas ela deixava de tomar às vezes e foi exatamente isso que permitiu a minha vinda.
- Caliban, infelizmente eu não posso receitar estes remédios a você.
- Doutora... você não vai desejar fazer isso. Não vai querer me decepcionar, não é?
- O que você quer dizer com isso?
- Se não o fizer, e lhe mato sua puta velha. Arrancarei seus olhos com minhas próprias mãos e encontrarei alguém que me forneça o que quero. Mas antes, quero que veja uma coisa.
Em nenhum momento de minha vida presenciei algo tão repulsivo quanto isso.
- Sabe, Doutora – ela começou a falar enquanto sua mão foi para o peito – eu era um homem no plano em que vivia – sua mão desceu para a barriga e a enfiou por baixo da blusa, subindo – eu não era o que se pode chamar de um homem de bem... Eu fazia coisas – sua mão chegou aos seios e começou a apalpá-los – , fazia coisas terríveis, coisas que a perturbariam só de imaginar – sua mão desceu novamente, passou pela barriga em direção a virilha –. Ah... eu adorava fazer aquilo com aquelas mulheres... – sua mão adentrou a saia indo para a região íntima – e agora, olha só que conveniente... Eu sou uma mulher!
- Caliban, por favor, pare com isso!
- Eu te estupraria agora mesmo se eu não fosse uma mulher, sua velha imunda. Eu ainda não provei dos prazeres que esse corpo pode me proporcionar e você já vem querendo me impedir de fazer o que quero, sua filha da puta!
- Está tudo bem, apenas pare com isso, eu faço o que você quiser mas não continue com este ato horrendo!
- Você sabe o que quero...
- Eu já lhe disse, isto não será possível!
Ele fechou a cara. Retirou a mão de dentro da saia e se levantou, em seguida, abaixou sua saia, deixando à mostra suas partes íntimas e se sentou novamente na poltrona, abrindo suas pernas com um sorriso insano no rosto, me provocando, e começou a se tocar.
- Por favor, pare.
Caliban simplesmente ignorou meu pedido e continuou com o que estava fazendo, soltando suspiros e gemidos de prazer, fora o sorriso doentio que seu rosto expressava.
- Caliban, já chega com isso!
Me levantei e fui em sua direção, peguei sua saia e joguei em seu corpo.
- Vista agora!
Sua face fechou, se levantou e me golpeou no rosto. Eu caí e fiquei desnorteada. Caliban se movimentou, pegou o copo que havia tomado água e o quebrou, voltando para minha direção. Ele me virou de barriga para cima e sentou em cima de meu peito. Com o caco que tinha em mão aproximou de meu rosto.
- Você quer morrer, não quer?
- Não, não por favor, não faça isso!
- Eu perguntei uma vez, vou perguntar novamente: Você quer morrer, não quer?
- Caliban, não! Por Deus!
Ele sorriu, afastou o caco de vidro do meu rosto e se reposicionou, trazendo sua cintura para frente.
- Agora me chupa sua puta!
Agarrou meus cabelos e esfregou meu rosto contra sua vulva.
- Me chupa porra!
Eu não faria isso. Não faria, até que ele não me deixou escolha. Ele cortou meu braço com aquele caco.
- Me chupa agora sua vaca, ou vou cortar seu pescoço sua puta velha!
Eu... eu não tive escolha. Estava desesperada e tive que fazer o que ele disse. Por vários minutos ficamos naquela posição até que ele estivesse satisfeito.
- Para uma velha, você até que sabe o que faz com a língua. – disse me provocando.
Ele se levantou, pegou meu copo d’água e foi em direção a janela.
- Levante-se.
Eu me levantei.
- Vá se lavar e quando voltar me traga os medicamentos.
Eu o obedeci. Depois de alguns minutos eu estava de volta a sala onde conversamos. Ele já estava vestido.
- Onde está?
- Aqui. É tudo o que tenho.
- E pode me conseguir mais, não é?
Eu não o respondi. Ele sorriu.
- Até mais Doutora, nos veremos em breve.
Ele deu as costas e foi em direção a porta de saída, a abriu e atravessou para fora, porém, antes de fechar a porta falou:
- E não faça nada estúpido de que vá se arrepender.
E a porta se fechou.
Depois do ocorrido, só me restou limpar a sala suja e transcrever nossa conversa gravada para este documento.
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Hoje pela manhã dois policiais bateram em minha porta. Eles queriam saber sobre uma de minhas pacientes, Ana. Acompanhei-os até a delegacia onde fui informada de que Ana havia se suicidado, porém, antes de partir, deixou uma carta para ser entregue a mim, nela dizia:
"Doutora, me perdoe mas já não há outra saída para mim. Ele me dominou por dois meses, mas com a ajuda de Vivian eu consegui tomar o controle novamente, mas ele não para, ele não vai parar e não há como impedir. Eventualmente ele tomará conta de mim outra vez.
Em conversa com Vivian, ela me deu uma solução para este problema. Eu deveria me matar, pois o ciclo reiniciaria e eu voltaria para o mundo, nova em folha. Eu não compreendi muito bem o que ela quis dizer, mas não vejo outra saída se não tentar o que me propôs.
Eu confio nela e o farei.
Agradeço o seu trabalho e peço minhas mais sinceras desculpas pelo o que ele fez a ti aquele dia.
Adeus,
Ana Francis."
Após isso, apresentei tudo o que tinha de material aos peritos, mas "nada conclusivo" foi encontrado.
O caso foi arquivado e ela foi apenas mais uma vítima de suicídio devido a problemas mentais.
Escrito por: Alan Douglas
Para: Ler Pode Ser Assustador e Não Entre Aqui
Muito boa
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