Full width home advertisement

Post Page Advertisement [Top]


(Google Imagens)

E aqui estou eu. Nesse lugar pequeno e escuro, frio e apertado... a madrugada é densa como a fumaça de fogueiras recém-acesas que penetra ardentemente em nossos pulmões sem que queiramos. E é também chuvosa, posso ouvir as geladas gotas celestes precipitando-se em minha janela fechada, sendo trazidas pelo vento com tanta força que posso vê-las atravessando o vidro e me banhando em um estranho frescor inesperado, mas que muito provavelmente conduziria o meu corpo a desenvolver uma pneumonia ou algo assim.

Sinceramente, a minha saúde nunca foi boa. Talvez seja pela falta de alimento – é o que eles sempre diziam. No entanto, não vejo a necessidade de me alimentar sendo que passo os meus dias sem mal me mover. Vejamos... acredito que o máximo exercício que eu tenha feito estes dias seja levantar e sentar. Ah sim, é claro, e deitar também. Deito-me na cama, levanto-me da cama, sento-me no chão. Levanto-me do chão, deito-me na cama. E essa é a minha alegre rotina.

Mas voltando ao que eu estava falando, era noite. Uma noite estranha, chuvosa, densa e sufocante. O meu quarto é escuro, uma escuridão profunda, permeada por pontinhos de luz invisíveis, porém satisfatoriamente brilhantes para olhos já tão acostumados ao permanente breu noturno no qual eu passo a maior parte das minhas horas. E há uma pessoa deitada ali que eu sei que não está lá e que nunca me responde, mas tem uma pessoa deitada ali. Longe, mas ali.

Esqueci de mencionar que eu costumava me levantar e sentar para ir ao banheiro, também. Como posso ter me esquecido de algo tão básico? Sim, eu sei, minha cabeça está cada vez mais esquisita. Não, não precisa dizer – eu disse não. Não, não diga isso outra vez... quer ficar quieto? Tudo bem? Obrigada!

Ele é irritante. Sim, é completamente irritante! Esse meu gato medonho de um olho só. Seu olho brilha amarelo no escuro, é assustador. Está sempre miando e me pregando peças, adora confrontar os meus pensamentos.

Eu só acho estranho que ninguém mais possa ouvi-lo falar, nem mesmo miar. Na verdade, dizem que não tem gato nenhum por aqui. Em uma verdade ainda mais pura, dizem que não há pessoa alguma aqui. Mas eu estou acariciando os seus pelos negros e macios neste mesmo instante, posso ouvir seu ronronar suave... rrrrrr... é um som tão agradável e relaxante. Talvez eu deva dormir um pouco?

Não, espere. Eu falava acerca da noite. Densa, escura, chuvosa e sufocante. E fria. Meu corpo inteiro, dos fios de cabelo que brotam dessa minha cabeça dura e disforme até as unhas quebradiças dos meus dedos destes pés terrivelmente ásperos – preciso fazer alguma coisa com eles, isso já está demais -, ele todo vibra em tempos descompassados e pausas inesperadas. Ele treme, treme... e minha respiração é ofegante. O chão é frio, um certo mármore branco-agora-encardido que me arrependo amargamente de ter comprado. Madeira escura seria muito melhor; orgânica, morna e aconchegante... o negror de suas inúmeras tábuas mesclando-se com o negrume de meu quarto.

Ah sim, mencionei que o local onde eu estou é apertado. Não foi o que disse? Bem, mas se há inúmeras tábuas, então decerto que o local não é tão apertado assim.

Mas é.

No canto da parede pintada de preto, prensada no lado oposto pela minha cama macia, logo abaixo dessa desagradável janela barulhenta. É um pedacinho apertado do meu quarto, mas adoro ficar aqui. Sinto-me segura. Aliás, meu bichano está logo à minha frente, deitado aos meus pés; meu pequeno guardião. Continuo acarinhando sua cabeça pequenina, as orelhas descansadas. É engraçado como o seu corpinho é frio, nunca aquece os meus pés em noites assim, justamente quando preciso de seu calor.

Oh sim, e a noite é fria. Mas também é calma, apesar da chuva e de todos esses trovões escandalosos. Quero dizer, não há ninguém gritando dessa vez. Não há ruídos indesejáveis e nem risadas lá fora, apenas as relaxantes notas extraídas pela água ao bater nas folhas das árvores, no gramado de meu jardim e na minha janela fechada. Janela barulhenta, aliás. Mas é relaxante.

Às vezes, penso que o silêncio me prega peças, assim como o meu gatinho querido. Mas as peças do não-ouvir são muito mais maldosas e macabras, completamente macabras. Há momentos em que tudo está no mais completo silêncio e, sem mais nem menos, há gritos lá fora. Gritos que me assustam. E batidas na porta que nunca mais abri – já faz algumas semanas, se bem me lembro. Mas é assustador.

Oh, e a chuva é alta e o vento sopra fortemente, assoviando músicas chorosas e lamentos agudos. É uma pena que não posso compreendê-lo. As gotas são tão delicadas e perfeitas, deve haver uma história para se ouvir. Várias, provavelmente. É um longo caminho que elas percorrem até chegarem à minha janela, afinal. Mas sabe o que é? Eu tomei uma decisão recentemente. Não muito feliz e pouco menos trágica, mas é uma bela decisão.

Eu vou abrir a janela. Quero ver o que há do lado de fora. Posso até mesmo deixar o meu gatinho sair para brincar com outros felinos por aí, embora eu duvide que haja mais algum – é que eu nunca os ouvi. Pois bem, preciso me levantar para alcançar a janela. Minhas pernas estão tão finas que mais se parecem com dois palitinhos de churrasco. Arrisco dizer que a carne sendo assada seria a de frango, é a minha favorita. E também é carne magra, certo? Combina mais comigo agora. 

Eu abro muito lentamente as pesadas cortinas black-out, dando lugar a um quadro de pura escuridão salpicada de pequenas luzes. Mas essas são bem visíveis, devo admitir. Só não há mais por causa dessa chuva constante, inesgotável. Há quantas horas esse monte de água se precipita do pobre céu? Logo ele ficará seco e não terá mais lágrimas para chorar... é horrível quando isso acontece, quando secamos dessa maneira.

Mas logo depois das cortinas, destravo a tranca da minha janela e empurro com muito cuidado o painel de vidro grosso para o lado, que escorrega graciosamente e sem ruídos pelo seu trilho até chegar ao ponto mais distante. As gélidas gotas adentram o meu quarto e ouço o meu bichano miar alto em reclamação. Ahá! Sabe o que ele diz? Que não gosta de banho. Como se ele houvesse tomado algum recentemente para se lembrar de como um banho é. Ainda mais um prazeroso banho em uma banheira preenchida por água morna e perfumada. Se bem que... há quanto tempo eu mesma não tomo banho? Oh, não sei dizer. Mas também, isso não importa agora. A chuva irá lavar esse meu corpo fétido e desgastado, completamente pútrido e ressequido.

E a noite é podre, também. O cheiro de decomposição me embrulha o estômago e me faria vomitar – isto é, claro, se eu tivesse algo para vomitar. Às vezes, chego a pensar que nem mais estômago eu tenho. Ele nunca mais reclamou e nem tocou sua sinfonias antes tão altas e desconfortáveis, mas que nem por isso deixavam de serem sinfonias... eram agradáveis, no fim das contas. Eram conhecidas. Agora, parece haver muito que eu não conheço.

Oh, eu encaro a noite neste exato momento. Meus cabelos mal-cuidados estão encharcados e minha face, molhada por lágrimas frias que não são minhas. Isto não é lindo? Mas é uma sensação tão indescritível de liberdade pura... é como se houvesse uma luz branca a qual eu pudesse seguir e que me levasse a um lugar muito melhor do que esse. Eu até a seguiria, mas apenas se pudesse levar o meu gatinho junto. Não o deixaria sozinho por nada nesse mundo, ele não sabe se virar. Tudo bem que ele não precisa comer, mas ainda assim... a solidão é triste e angustiante demais para um ser tão pequeno e indefeso como ele. É triste até para mim.

Mas o que eu estou falando? Eu mesma escolhi essa situação, não foi? Sim, foi exatamente isso o que aconteceu. O forte fedor já está aqui há tanto tempo que já nem me incomoda da maneira que costumava incomodar. Eu apenas gostaria de, talvez, quem sabe... sair um pouco? Ver alguma luz que não fosse mínima? Mas a cada vez que eu penso nisso, sinto tanto medo. É como se qualquer luz pudesse me levar embora.

Muito bem, dito e feito. Fecharei minha janela, essas pesadas cortinas black-out e permanecerei aqui até que alguém tenha a coragem de me tirar. Aliás, acho que irei dormir um pouco. Não sinto mais sono, mas os sonhos... bem, eles me lembram de como eu era quando estava viva. Às vezes, sinto falta, mas... assim é melhor, não há mais dor. Certo, bichano feio?

          “Miau”, ele diz.



Escrito por: Milena Câmara
De: Não Entre Aqui

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O NEA agradece o seu contato, responderemos em breve!

Continue navegando pelo nosso blog e conheça nossas redes sociais
--------
https://www.facebook.com/naoentreaqui.blogspot
-------
https://www.instagram.com/nea.ofc/

Bottom Ad [Post Page]