(Google Imagens)
Foi quando seus olhos se abriram na escuridão.
- Ah, eu... – Sua voz se
embargou. Ela mordeu o lábio inferior com força e sentiu a garganta fechar. Seu
rosto se contorceu, e então ela voltou a fechar os seus olhos. – Eu... não
queria acordar, não mais. Não de novo.
Ela ficou de costas, deitada
em sua cama aquecida pelo calor de seu corpo, e apoiou o dorso da mão direita
na testa. Um, dois, três soluços se seguiram, junto de lágrimas salgadas que
rolaram pelo seu rosto e molharam o travesseiro branco.
- Eu não quero mais... – A voz
trêmula e embargada.
Ela então se virou de lado,
voltada para a parede gelada, e encolheu-se, abraçando os próprios joelhos. A
partir daí, chorou até conseguir voltar a dormir mais uma vez.
E essa era a rotina dela. Era
a vida que ela tinha, e nisso se resumia o que as pessoas comuns chamavam por
“viver”. Mas ela não era uma pessoa comum.
Ela tinha sorte de sua família
desprezá-la imensamente. Não que isso seja sorte, mas ao desprezá-la, eles
ficavam felizes em fingir que ela não existia. E era exatamente isso que ela
queria - não existir, então era muito mais fácil fingir que realmente não
existia.
Principalmente por também não
ter amigos, ao menos não mais. E não precisar ir à escola, já passara dessa fase.
Tudo bem que ainda era necessário comer, mas o mínimo possível já era o
suficiente. Dava pra continuar respirando, não que ela quisesse isso. Mas dava.
O fato aqui é que ela não
queria existir. Mas também não queria não existir. Essencialmente, ela queria
viver. Mas não nesse mundo, e sim em um que fosse melhor e mais vivo.
Verdadeiramente mais vivo, e feliz. Brilhante. Colorido, repleto de seres
alegres e otimistas, no qual você não precisaria fazer coisas para ser feliz.
Você simplesmente seria feliz por estar lá, por estar vivo e por respirar, e
dormir não seria prazeroso.
Não, pois o mundo real seria
muito melhor do que em sonhos.
Mas esse mundo não existe, e é
aqui que a história começa.
Ela dormira. Por noites, por
dias e semanas, ela dormira. E fora transportada para esse mundo mágico, de
seres inimagináveis e grandes amigos leais e alegres. Lá ela podia ser quem
era, e fazer tudo o que quisesse fazer. Tudo o que imaginasse poder fazer.
Podia voar, respirar embaixo das águas, conversar com os animais... podia ouvir
o que as pessoas falavam sobre ela de longe, e sempre eram coisas boas.
Até que sua mãe abrira a porta
de seu quarto com força, batendo-a, entrara e abrira as cortinas, destrancando
as janelas e abrindo-as com um estardalhaço terrível.
- Hora de levantar, sua inútil
desgraçada. Acorda pra vida, já estou farta!
- O quê?... – Dissera com a
voz sonolenta, coçando os olhos – O que está acontecendo? Não, me deixa em paz!
O que eu te fiz?
- O que você fez? Exatamente,
não fez merda nenhuma! Preciso do quarto, você vai sair daqui agora. Encontre
um lugar, arranje um emprego e suma da minha vida, sua porca imunda!
Sua mãe arrancou os lençóis
que cobriam o corpo da filha com força, jogando-os no chão, e espancando-a com
tapas e socos para que a garota levantasse e fosse embora.
- Você não tem nada pra levar
mesmo, só vá embora daqui.
- Pare com isso! Cadê o meu
pai? Mãe, cadê o papai? – Com lágrimas nos olhos, fora jogada para fora da cama
e estava agora rastejando aos chutes da mãe em direção à porta.
- Ele morreu, querida. – O
sarcasmo na voz era evidente. - O outro já vem e preciso do quarto agora, seu
lixo. Saia!
E ela saiu. Levantou-se com
dificuldade e andara o mais rapidamente que conseguira para fora de casa. Era
dia, mas começara a escurecer. Estrelas despontavam aqui e ali no céu levemente
claro, a brisa fria do outono soprava. A porta fora fechada com estrondo atrás
de si pela sua mãe, acompanhada de um “não volte mais aqui, você não tem casa”.
- Eu sempre soube disso,
mamãe. Eu sempre soube.
Ela andara o suficiente para
se distanciar da lá. Os olhos focados no chão, os pés descalços sofrendo cortes
por pedras pequeninas, mas afiadas. Não vira ninguém, não ouvira e nem sentira
nada. Não soube por quanto tempo andara, mas já estava longe o bastante. Havia
uma parede, e lá ela se apoiou. Jogou-se no chão como um saco de batatas
rasgado, apoiando as costas na parede.
“Aqui ou ali, numa casa ou na
rua, tanto faz. Eu só quero dormir, quero fingir que morri... mas não quero
morrer.”
Se o leitor imagina que ela
começara a chorar, foi exatamente isso o que aconteceu. Mas silenciosamente, de
maneira limpa e simples. As lágrimas fizeram plic, plic no chão. O coração
fizera tu-dum. E o peito se fechara novamente, junto com os olhos e a sua
consciência.
Era noite lá também, mas o
ambiente estava diferente. A atmosfera parecia ter mudado de alguma maneira, e
ela estava sozinha.
- Olá?... – Ecos reproduziram
sua voz. Fora isso, nenhuma resposta.
“Ora, mas que estranho.”
A escuridão era quase
palpável. Não havia estrelas, e a lua parecia encoberta por nuvens negras.
Árvores altas despontavam do chão, as folhas balançando ruidosamente nas copas.
O som de água correndo num riacho próximo era audível, mas não era cristalino. Parecia...
pegajoso.
- Está tudo muito estranho,
aqui não parece o lugar para onde eu sempre venho – um grito de voz feminina,
estridente, perfurou seus ouvidos.
- Quem é? – A preocupação
coloria sua voz. – Sarah, Lisa? Cadê vocês, estão bem? Nora?
Ela correra para algum lugar,
mas não sabia ao certo para onde. A voz não vira de uma direção, mas de todas.
Dessa vez, o lugar não respondia à sua imaginação como costumava fazer.
Primeiro a pele sentira o
calor morno dos raios de um sol matinal, depois os olhos se abriram para a luz
suave.
“Merda.”
Sentia-se cansada. Olhara para
frente, e pés apressados passavam. Ela era uma indigente, moradora de rua
comum, um dos fantasmas da cidade. Mas queria o escuro para poder dormir mais
um pouco. Não estava angustiada por ter acordado, mas brava e um pouco...
assustada. Levantara-se, andara até um viaduto próximo e encontrara uma caixa.
Sim, serviriam muito bem; a caixa aberta como uma tenda, o viaduto bloqueando
os raios solares. Ajeitara-se naquele local. Fechara os olhos mais uma vez,
dormira e voltara para seu mundo.
Era dia. Mas não havia calor,
e sim um vento fresco e perfumado com flores doces. Era o mesmo local, não
mudara em nada. No entanto, isso que era estranho; a água pegajosa, as árvores
altas e estreitas, o grito que não cessa.
Ah, um grito que não cessa.
Ela correu, mas agora havia
uma direção. O som a levou para um aglomerado de árvores, arbustos e plantas. O
barulho do riacho também se tornara mais próximo. Havia espinhos que rasgavam
sua pele, mas o sangue não brotava e a dor não surgia; era um sonho.
Não havia pássaros cantando e
nem borboletas voando. Sem libélulas zunindo ou cegonhas gorgolando, nem
coelhos correndo ou fadas brincando. Era estranho. Mas chegara ao lugar, e o
grito estava numa altura insuportável.
- Pare com isso! Por que está
gritando assim, tem alguém te matando afinal de contas?!
As mãos cobriam os seus
ouvidos, mas os olhos chegaram à forma deitada à beira do riacho. Era um
líquido espesso que saía do corpo. Negro e fedendo a podridão, emergindo dos
poros da pele daquele ser. Isso caía no riacho e o intoxicava. A mulher nua
tremia enegrecida, pegajosa como o barulho da água suja.
- Quem é você? – Ela se
aproximou. Com essas palavras, o grito cessara.
A garota anda alguns passos,
aproximando-se da mulher, e a toca com a ponta de um dedo. A carne afunda com
um som molhado, e o dedo é rapidamente afastado.
- Eeeew! O que aconteceu com
você? Que... coisa é você?
A mulher
continua em silêncio, ainda tremendo e deitada de costas na terra molhada. O
dedo da garota, curiosamente, não ficara sujo.
- Acho que
vou brincar com você, então.
Dessa voz,
ela tocou com a mão espalmada. Afundou-a na carne enegrecida da barriga da
mulher até desaparecer em seu interior, e puxou-a de volta em seguida. O
líquido negro subiu e borbulhou como em uma esponja, mas a sua mão estava ainda
limpa. Ela achou graça do fato e começou a rir.
- Mas que
curioso! Espere aí, já volto.
Havia agora
dois buracos naquele corpo, um pequeno do tamanho de um dedo e outro fundo, do
tamanho de uma mão. A garota volta com um pedaço grosso de madeira.
- Agora
vai, heh!
Inspirando
fundo, ergueu a madeira até acima da cabeça, encurvando as costas para trás, e
abaixou-a com toda a força que tinha, jogando o peso de seu corpo para frente.
Acerta em cheio o peito, que se abre e faz sons diferentes de antes. Crack, de
ossos quebrados. Líquido espirra com força para longe, e o cheiro de carne
podre aumenta. Ela ri ainda mais.
- Baaam!
Mas você nem grita mais, ora – O sorriso da garota é largo e brilhante.
Mais uma,
duas, três pancadas fortes.
E o barulho
de carros passando começou a incomodá-la. Ela abrira os olhos para ver luzes
passando velozmente diante de si.
- Ah... a
caixa, a tenda caiu. – Olhou para trás, e lá estava o papelão aberto em formato
de tenda. Talvez o vento dos carros passando o tivesse jogado para trás, afinal
de contas.
Foi quando
ela se lembrara de seu sonho como num flash. As imagens voltaram, a mulher nua
sendo quebrada e seu corpo, sendo afundado com pauladas certeiras. É quando
também seu peito se aperta, e ela começa a tremer sem entender o que havia
acontecido.
- Meu Deus,
eu... o que foi que eu fiz? – Ela cobre a boca com a mão esquerda enquanto
observa a direita, que afundara no corpo da mulher em seu sonho, com espanto e
terror. – Mas o que foi aquilo?
Seu
estômago roncara. Isso ela certamente sabe o que é, embora estranhe pelo fato
de a fome não ter reclamado por comida há tempos.
- Ah...
fome, estou com fome. E agora?
A garota
pisca, confusa. Pisca novamente. Chacoalha a cabeça e mexe os cabelos sujos e
embaraçados, muito engordurados. Grita baixinho. Levanta-se com o que sobrara
de uma caixa de papelão em mãos. Ela percebe que sente frio, e que parte de seu
tremor deve-se a isso. Percebe também que está de noite, e que estrelas piscam
brilhantes no céu junto de uma lua minguante muito clara.
Lentamente,
dirige-se para a primeira loja com comida que avistara. Senta-se próxima à
porta, e simplesmente espera até que uma boa alma lhe traga algum pratinho com
algo comestível, o que não demora muito.
- As
pessoas sempre dão comida pra gente de rua, isso nunca muda. Chega a ser engraçado.
Como se comida fosse tudo de que todo mundo precisasse pra viver.
Viver. Ela
mastiga cada grão, cada pedacinho da pequena marmita que lhe deram, aos poucos.
Chomp chomp.
O gosto é o mesmo. Papel,
carne, balas, arroz, frutas. Tudo tem o mesmo gosto, simplesmente não importa.
Mas a diferença é que papel não é comestível... bem, só essa que é a diferença.
Talvez também não seja muito nutritivo. Mas ela agradecera com veemência à
pessoa que lhe entregara a comida, e desejara muitas bênçãos de Deus; porque a
pessoa acreditava em Deus, é claro. Deus sempre melhora as coisas pra todo
mundo, no fim. E é bom para expressar gratidão.
Isopor não ajuda muito para
dormir, então ela simplesmente o coloca no lixo mais próximo que encontra.
Precisa sair de perto da loja, ou outra alma caridosa lhe compraria mais uma
marmita ou algum bolinho para que ela comesse mesmo não querendo e já estando
cheia. A garota se levanta e caminha um pouco, encontrando uma pequena área
verde com árvores. É perfeito. Lá, ela se acomoda nas raízes de uma árvore
grande e antiga e fecha seus olhos para adormecer, embora seja com certo receio
dessa vez.
Ao abri-los, nada mudara desde
a sua última visita. Continuava dia, ainda ventava e a massa de carne nua
enegrecida permanecia deitada trêmula à beira do riacho, com líquido ainda
brotando dos pedaços, do que deveria ser pele e músculos, e formando uma poça
que escoa ininterruptamente para as águas antes cristalinas.
- Ah... – ao se lembrar do que
acontecera, a garota solta um riso contido. - É verdade, eu estava brincando
com você. Sabe, tive uma ideia.
Um bastão. A garota queria um
bastão. Por mais que aquele líquido negro não sujasse suas mãos, ela queria
algo eficaz com o que tocar no corpo, porque aquilo era nojento. Lembrou-se do
pedaço de madeira, mas queria algo mais grosso. Encontrou um galho caído, um
daqueles grandes, e apesar de pesado, decidiu usá-lo. Enfiou-o debaixo do que
restara de corpo e como numa alavanca, virou-o. O corpo caiu no riacho raso e como
a água era corrente, rapidamente foi lavando o líquido negro e levando-o para
longe ao mesmo tempo em que ele brotava. Era um processo engraçado de se ver,
como o sangue de uma ferida funda no dedo sendo escoado debaixo da água gelada
de uma torneira aberta.
E o que a garota viu realmente
gelou sua espinha.
O corpo podia ser um qualquer,
mas o rosto ela conhecia.
E era a face de sua mãe.
- Mas o quê... você? Aqui? Não
brinque comigo, mas que merda!
O galho foi jogado por ela com
força no chão, para logo depois ser recuperado pelas suas mãos velozes e usado
com total confiança. Ela pulou dentro da água e, a despeito da nojeira que
estava aquele riacho, decidiu irracionalmente deixá-lo ainda mais sujo. Ainda
mais nojento. Com mais massa, mais carne solta, a correr para longe por aquelas
águas lúgubres. Com força, com vontade e ferocidade, golpeia repetidas vezes a
mulher no rosto, nos braços, nas pernas, e em tudo o mais que restara
identificável.
Ela suava e arfava. O líquido
negro espirrava junto da água para longe, manchando grama, tronco de árvores
próximas e até mesmo algumas folhas de uns galhos mais baixos. Porém, a garota
continuava limpa. E sorrindo.
- Ufa! – Limpou o suor do
rosto com o dorso da mão direita, a mesma que apoiara na testa ao chorar
naquele quarto fechado que cheirava a mofo.
- Isso foi... – ela hesita um
pouco antes de dar seu veredito. - foi bom. Foi divertido!
Novas risadas, cada vez mais altas
e cheias, cobriram o ar ao seu redor. Ela estava bastante alegre.
Os lábios abriram antes de
seus olhos dessa vez, num sorriso sincero. Ao acordar, encontrara um cãozinho a
observando com o rabo balançando alegremente para os lados. Era um vira-lata,
talvez um filhote por ser tão pequeno? A pelagem branca encardida com manchas
pretas era adorável. A cabecinha caiu para o lado, inclinando-se de modo
inquisitivo.
- Oi rapaz. – Ela disse,
inexpressivamente. O sorriso havia sumido, mas esticara os braços para
acariciar o cão com delicadeza.
Enquanto o fazia, ele se
aproximara e aconchegara-se em suas pernas, fungando e com o rabinho ainda se
mexendo para lá e para cá. Suas mãos acariciavam a cabeça branca com orelhas
pretas, passaram para as costas magras com manchinhas, e subiram para o pescoço
branco.
Suas mãos apertaram aquele
pescoço branco. Ah, mas ele era tão pequeno... o cãozinho latiu, e então ele
grunhiu. Depois começou a chorar, e a tentar morder e se desvencilhar, mas
inutilmente. As mãos dela eram fracas, mas a vontade era forte; e a garota a
agarrou com toda a força que tinha.
Foi quando o rabinho parou de
se mexer.
- Ei... rapaz? Oi! – Ela o
trouxe ao seu peito e o envolveu com seus braços. Sentiu as costas do filhote,
e elas não mais se moviam à procura de ar. – Isso foi igual. Isso foi... ah,
foi bom!
Ela abriu aquele sorriso outra
vez, e foi quando percebeu.
Sim, isso mesmo. A garota
percebeu que existiam mais coisas desconhecidas que podiam ser sentidas. Mais
do que amor, mais do que raiva ou angústia, um ninguém como ela podia sentir
algo melhor do que tudo isso. E não precisava estar sonhando. Ela podia muito
bem viver para fazer com que seus sonhos se tornassem realidade, e de muitas
formas possíveis.
Com todos os seres possíveis.
Escrito por: Milena Câmara
De: Não Entre Aqui
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